13.4.03

Penitência - Ariel Dorfman

Sei algo sobre nomes, capitão
Aqueles que conquistam sempre devem ter um nome pronto.
Mesmo antes da espada, mesmo antes do canhão.
Vi a ilha e chamei de San Salvador.
San Salvador porquê havíamos sido salvos.
Não perguntei aos nativos
eles eram amistosos, estavam quase nus e tinham a pele marrom sob o sol tropical
Não perguntei a eles como chamavam aquele lugar
Não perguntei a eles como chamavam seu lar
E não disse a eles que todos iriam morrer
Não disse a eles que ninguém jamais saberia o que falavam.
Como Falavam. As palavras seriam engolidas como os barcos são
engolidos pela tempestade de um mar triste
como corpos são engolidos por uma mina
Agora eles me ensinam suas palavras e suas canções
aqui na escuridão da eternidade
Estudo o que eles chamam de lua de amor e de adeus
Escuto seus murmúrios caribes
e franzo os lábios e assobio e amacio o ar com a língua que
ninguém falou nessa ilha por mais de 500 anos
Esta é a minha penitência
E então quéchua e então maia e então tzotzil
e então as mil e dez línguas que um dia viveram
nas terras que não seriam chamadas pelo meu nome
que seriam chamadas pelo nome de outro alguém
Amigo América
E então o aprendizado vai continuar
navajo, guarani, nahuatl e os sons que um dia encheram os
ouvidos de lindas donzelas para produzir colheitas
e ninguém hoje sequer sabe os seus nomes
aprendendo aprendendo até que tenham me ensinado a pronunciar
cada última palavra. Como se diz amigo. Como se diz morte. Como se diz para sempre. Como se diz penitência. Me ensinarão a dizer penitência em suas mil e dez línguas
Sua penitência, capitão? O que o aguarda?
Você disse que veio trazer a liberdade
Liberdade. Quando um outro pode decidir por si próprio
Você disse que veio trazer a Democracia
Democracia. Quando um outro pode controlar por si próprio
Você disse que veio com a libertação
Libertação. Quando as pessoas que fizeram o mundo dão nome ao mundo e a si próprios.
Liberdade. Democracia. Salvação.
Palavras. Suas palavras, as palavras de seus líderes.
E aí você chamou o aeroporto por outro nome.
É nosso. Nós o tomamos. Estamos aqui.
Matamos os homens que os chamavam por outro nome.
Podemos chamá-lo agora do que quisermos
Sob um céu repleto de bombas de outro nome.
Bagdá agora. Não Saddam.
Aeroporto Saddam. Não um nome de que eu goste, de que gostemos, aqui no outro lado. Um nome amaldiçoado nos porões onde os dedos são esmagados. Onde a cabeça é partida. Onde os dentes são retirados. Arrancados
As raízes desse nome Saddam
o que golpeia, o que resiste, o que traz a dor, o que proíbe
todos todos gritando por dentro deste nome
mas não para que você, capitão, mude. Não para que você decida. Sua penitência? Esperam por você, John Whyte, aqui na gloriosa poeira de palavras que um dia rascunharam em pergaminho
aqui na luz escura da morte
esperam por você os poetas do Iraque
Nazami e Omar Khayam, Ferdowski e Sa'Di
esperando como os tapetes em que se sentavam
esperando como as fontes em que bebiam
todas as palavras que você não pensou em usar
capitão John Whyte. Todos os nomes que você
não sabia, nem mesmo o seu
barakah branco, barakah da benção barak
Você terá que aprender. Pronunciar como tive de
pronunciar palavra por palavra
o árabe que você não se interessou em conhecer
como o nahuatl que eu nunca soube
como o cherokee que eu nunca soube
você terá que aprender. A começar com as cem palavras que emanam de Alá
Rahman, o compassivo. Rahim, o Piedoso. Aeroporto internacional Rahman. Aeroporto internacional Rahim .
Você consegue ouvi-los agora que avança rumo a Bagdá
Consegue ouvir suas vozes
Rahman o compassivo. Rahim o piedoso
Rahman Rahim e Salam. Salam. Paz
Um dos atributos de Deus
Sua penitência, John Whyte, John Bakarah, nunca pensou
Que o povo do Iraque poderia querer chamar sua terra
pelos muitos nomes de salam, pelos muitos nomes da paz?
Sua penitência, ó Whyte Branco
Levará a você e seus líderes a eternidade.
A Eternidade. Para aprender a palavra paz.

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